“Vivo minha vida em círculos cada vez
maiores que se estendem sobre as coisas. Talvez não possa acabar o último, mas
quero tentar.”
-
Reiner Rilke
Símbolos e Imagens Arquetípicas
Símbolo
A
palavra símbolo remete ao do grego symbolon, derivado do verbo sym-ballein, que
significa “lançar com, pôr junto com juntar”. A etimologia da palavra remete
que símbolo é, a priori, uma dualidade, que se forma uma. A própria definição
da palavra já remete a integração dos opostos e pode ser associada com a imagem
do Ourobóros.
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Primeira gravura do "Uraltes chymisches Werck" de Abraham Eleazar |
Os conceitos simbólicos foram
desenvolvidos em diversas religiões como reflexo de diferentes concepções do
mundo e de novas linguagens.
“No
seio da multiplicidade de crenças desenvolvidas pelo ser humano, a primeira
distinção efetuada pelo homem foi entre o Bem e o Mal. Nas culturas pagãs, este
conceito de dualidade moral poderia ser identificado nos símbolos positivos com
o lado masculino, o Sol ou o céu, e nos símbolos negativos como o preto, o lado
feminino, a Lua, a água ou o inferno. Da mesma forma, nas religiões, como por
exemplo o cristianismo, o poder do Bem encontra-se simbolizado em Deus e em
Cristo, e a força do Mal em Satanás. No que respeita a mitologia, tal como
acontece no hinduísmo, a luta travada entre as forças superiores e as força
inferiores é representada através do conflito entre a ave solar Garuda e as serpentes Nagas, hindus
e, na tradição ocidental, entre a águia e o dragão. Na maioria das culturas a
verdadeira perfeição apenas poderá ser alcançada através da conciliação e da
união das forças opostas do universo. Nesta sequência, o símbolo taoista de
Yin-Yang e, na alquimia, a figura do Andrógino representam ambos estes ideais,
à semelhança do que acontece na psicologia.” (CHEVALIER, 2008, 10)
Jung
(1964) introduz a noção de símbolo como um conjunto de significados que
transcendem sua própria imagem concreta. Um símbolo remete a algo maior que o
próprio símbolo; um conjunto de ideias orientadas através de um sutil
emaranhado de padrões.
Como
possível gênesis de símbolos, Jung compreende que os sonhos revelam através de
suas férteis imagens arquetípicas, grande parte do mistério do símbolo, e que,
ao sonhar, o homem bebe da fonte do desconhecido e inicia sua jornada pelo
conhecimento. Compreendendo os sonhos como manifestados também por conteúdos
inconscientes, logo se percebe que a busca de conhecimento através dos sonhos,
nada mais é do que buscar conhecer a si mesmo. Através de sua consciência, o
homem aprendeu a viver através da parcial previsibilidade das coisas, mas seu
inconsciente demonstra ao menos metade de um grande escopo de possibilidades
antes fora do seu campo de compreensão.
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Cosmic, arte de Geometria Sagrada de Daniel Martin Diaz |
Jung rompe com a escola psicanalítica quando
define que o valor do conceito de “libido não está em sua definição sexual, mas
no seu ponto de vista energético” (JUNG,
1989, p. 127-8), ou seja, define como energia psíquica todas as pulsões
provenientes da psique e do inconsciente, estabelecendo que a libido freudiana
é só mais um dos canais de expressão desta energia. O que difere empiricamente
na interpretação do fenômeno é que na teoria freudiana parte-se da causa para o
efeito, engessando a percepção interpretativa num molde teórico, a teoria da
sexualidade. Ao partir dos efeitos para depois compreender as causas, Jung
consegue analisar a psique de forma dinâmica, e superar a teoria sexual. A
energia psíquica é a fonte de toda a movimentação humana em busca de
crescimento.
Ourobóros
Mas
o que é um Ourobóros? Quem nunca ouviu a expressão ‘morder a própria cauda’? É
normalmente utilizada para descrever o momento em que alguém, inconsciente de
si, repete ações sem atingir os objetivos estabelecidos, e por isso, exige um
olhar para si, reavaliando seus métodos de ação.
O
Ourobóros é a resolução do conflito dialético atingido na busca da individuação
à unidade da separação, ou solve et coagula (dissolve e solidifica),
representando metaforicamente todo o processo alquímico descrito no capítulo
anterior. É uma imagem alquímica presente em diversas esferas sociais e
religiosas, na qual uma cobra, ou dragão, morde a sua própria cauda num
movimento circular. A imagem revela o paradoxo do infinito, onde tudo se inicia
em seu próprio fim, e acaba em seu próprio começo.
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Exemplo de um Dragão Ourobóros |
Se reduzirmos o símbolo em imagens
ainda mais primordiais, como círculo, o dragão e a sepente começamos a desvelar
o significado deste símbolo. Seguem transcrições do “Dicionário de Símbolos”,
de Nadia Julien:
Círculo
- Representa “o desenvolvimento contínuo da criação”. E mais, ele representa o
ciclo do tempo, o movimento perpétuo de tudo que se move, os planetas em torno
do sol (círculo do zodíaco) que se projeta nos tempos circulares, a arena, o
circo, a dança circular.
- Símbolo da perfeição para o
Islamismo, da divindade (disco solar) e da luz no Egito, expressão do que não
tem começo nem fim, simbolizando a eternidade representada pela serpente que
morde a cauda, cuja divisa é um, o todo, a substância universal rarefeita até a
imperceptibilidade para constituir a essência íntima das coisas, o fundamento
imaterial de toda a materialidade, ou a prima matéria dos alquimistas.
- O círculo é também o zero de nossa
numeração e representa as potencialidades, o embrião. Comportando um ponto
central, o círculo é a representação do ser manifestado, evocando o conceito de
ordem, de cosmo e de harmonia. Nos sonhos o círculo é um símbolo do Eu, e
indica o fim do processo de individuação, da evolução da personalidade para a
sua unidade.
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Diagrama em círculos dos planetas alquímicos |
Dragão
- Para os alquimistas, as atitudes do
dragão simbolizam as etapas da grande obra.
- Imagem arcaica das energias mais
primitivas, o dragão representa o inconsciente durante tanto tempo enquanto não
possuirmos acesso a ele, onde as paixões os complexos inconscientes, os desejos
ocultos conduzem a uma vida arcaica. Isto que se explica a fundo com os poderes
do psiquismo, que luta com o dragão, pode recuperar uma parte das energias
inconscientes que pode utilizar para dominar sua vida.
- A luta com o dragão é um símbolo do
amadurecimento... então, ele terá ganho o tesouro que os dragões guardam em
quase todas as mitologias. Libertará sua alma, esta virgem que o dragão
mantinha prisioneira.
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O Dragão Smaug protegendo seu tesouro na gravura "There He Lay" de Justin Gerard
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Serpente
- A serpente representa o conjunto dos
ciclos da manifestação universal. No processo de criação, rodeando o ovo
cósmico (o caos), simboliza a fecundação pela incubação do espírito vital
divino, semente de todas as coisas, assim liberadas dos elos da matéria inerte
pelo poder divino.
- Símbolo da imortalidade, enrolada em
torno da árvore de maçãs de ouro do jardim das Hespérides; rodeia o Ônfalo, ou
a montanha cósmica (eixos do mundo), simbolizando o conjunto de ciclos da
manifestação universal, o Samsara, a cadeia do ser no ciclo indefinido de
renascimentos, o percurso indefinido e renovado das existências.
- A serpente do paraíso é o símbolo do
conhecimento perigoso (descoberta da sexualidade). Daí transformar-se num
símbolo fálico e sexual (a serpente tentadora, portadora de forças perigosas e
maléficas cuja a arma é a sedução empregada por Eva, a Anima).
- Em suas relações com o inconsciente
coletivo, o ofídio representa num nível inferior a agressividade, e num nível
superior o poder e a sabedoria. É a representação do inconsciente, onde se
acumulam todos os fatores rejeitados, recalcados, desconhecidos ou ignorados e
as possibilidades desmedidas em nós.
- São estas forças muito primitivas,
aglomeradas em constelação, que colocam em jogo a serpente no sonho. É a
manifestação de uma energia psíquica dormente pronta a se tornar concreta, em
positivo ou negativo, em razão da ambivalência do simbolismo deste animal de
sangue frio (pavor, angústia), como do melhor (propriedades curativas e salvadoras).
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"De Zondeval" de Cornelis van Harleen |
Segundo
Erik Hournung (1999), a primeira aparição conhecida do símbolo Ourobóros está
no Netherworld, um texto funerário egípcio encontrado na tumba de Tutancâmon,
no século 14 AC. Referindo-se a união do deus Ra e Osíris no submundo. Em uma ilustração
deste texto, duas serpentes, mordendo as caudas. Ambas as serpentes são
manifestações da divindade integrada que representa o início e o fim do tempo.
O
texto alquímico “Chrysopoeia de Cleópatra”, datado do século está grafado com o
os dizeres ‘hen to pan’, em tradução livre: “o um é o todo” além de uma imagem
de uma cobra, metade branca, metade preta, mordendo a própria cauda. Novamente
a figura circular ofídia como uma dinâmica polarizada, cíclica que se integra
tornando-se Um. O Ourobóros de Chrysopoeia
poderia ser interpretado como o equivalente ocidental do símbolo taoista
Yin-Yang.
“El signo del Yin-Yang, según la filosofía
oriental, simboliza un concepto fundamentado en la dualidad de todo lo
existente en el universo. Describe las dos fuerzas fundamentales, aparentemente
opuestas y complementarias que se encuentran en todas las cosas” (BADANO,
2010).
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Ourobóros de Chrysopoeia comparado ao símbolo oriental do Yin e Yang |
Outra
alegoria religiosa que podemos associar com a simbologia da serpente e seus
movimentos circulares estão na cultura Hindu, através da serpente Kundalini,
que em sânscrito significa “serpente enrolada”. Nesta cultura yogue, o corpo
humano é divido em sete centros básicos de manifestação de energia, ou Chakras,
e Kundalini, a origem desta manifestação energética, estaria ‘adormecida’ no
primeiro centro, abaixo da coluna vertebral.
Conforme
o indivíduo se purifica e pratica as técnicas que envolvem controle da
respiração, postura e meditação, ele ‘desperta’ a ‘serpente’ que sobe pelos
centros de energia, fazendo com que o praticante atinja a iluminação, ou
individuação. A figura da esquerda representa este processo enquanto a figura da direita ilustra os centros de energia:
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Ilustração da subida de Kundalini e a referência do trajeto pelo "Chakras" |
Esse
mesmo simbolismo pode ser encontrado no Caduceu de Hermes, símbolo da medicina,
visto no capítulo anterior. Curioso a correspondência entre as cores dos sete centros de
energia com as sete etapas alquímicas que vimos aqui.
Limitemos
nossa análise a simbologia religiosa Alquímica, apesar de todos os sincretismo
encontrados em diversas culturas religiosas acerca da imagem do Ourobóros. Quem
sabe os posts futuros não possam tratar desses assuntos.
“O
Ourobóros é um símbolo dinâmico para a integração e assimilação de opostos,
i.e., da sombra... Simboliza o Um, que resulta no conflito do opostos, e
portanto constitui o segredo da prima matéria...” (JUNG, 1976, 365)
Esta
é uma imagem arquetípica bastante rica, contextualizado sob o paradigma de
integração, ou conjunção, de aspectos opostos. Fica evidente que a figura
representa não só a união dos opostos complementares da psique como todo o
potencial do processo alquímico.
“Os alquimistas, de sua própria maneira sabiam mais sobre a
natureza do processo de individuação que nós modernos, expressavam este
paradoxo através do símbolo do Ourobóros, a cobra que morde a própria cauda. Do
Ourobóros é dito ter o significado do infinito ou completude. Na antiga imagem
do Ourobóros está o pensamento de se devorar e se transformar em um processo
cíclico, pois era claro para os alquimistas mais astutos que a arte da matéria
prima era o próprio homem. O Ourobóros é um símbolo dramático para a integração
e assimilação dos opostos, ou seja, da sombra. Este processo de
"feed-back" é ao mesmo tempo um símbolo da imortalidade, uma vez que
é dito dos Ourobóros que ele mata a si mesmo e se traz à vida, fertiliza a si
mesmo e dá a luz a si mesmo. Ele simboliza o Um, que procede do choque de
opostos, e, portanto, constitui o segredo da prima matéria que [...] decorre,
sem dúvida, do inconsciente do homem." (JUNG,
1976, 513)
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Gravura de "Uma Coleção de Emblemas Antigos e Modernos" de George Whiters (1635) |
No
livro “A tábua de esmeralda: Alquimia para transformação pessoal”, Dennis Hauck
explícita sobre o símbolo ourobórico e o associa com etapas alquímicas:
"Descrições
mais alegóricas abundam na literatura medieval e representações, entre as quais
estão aqueles que compreendem tanto aspectos "esotéricos", quanto
"exotéricos" da Alquimia. Tal símbolo, cujas origens podem ser
traçadas de volta para o Egito Antigo é a dos Ourobóros, a serpente mordendo a
cauda, simbolizando a imortalidade, e os ciclos eternos de mudança do mundo.
Isso também pode ter significado para refletir a integração e reversibilidade
de certas transformações alquímicas como a "destilação" e
"condensação". (HAUCK, 1999, 156)
|
Gravura encontrada no Castelo de Ptuj, Slovênia (Séc XII) |
Ou
ainda nas palavras de Von Franz, no livro Introdução a Alquimia:
“O que tem luz se cria na escuridão da luz. Mas quando alcança sua perfeição,
recupera-se de suas enfermidades e debilidades e então aparecerá esta grande
corrente da cabeça e da cauda. [...] É uma luz
nova que nasce na escuridão, e então se vão todos os sintomas neuróticos e a
enfermidade e a debilidade [...].
Aqui é mister recordar ao Ouroboros, que come a cauda, onde os opostos são um:
a cabeça está em um extremo e a cauda no outro. São um, mas têm um aspecto
oposto e quando a cabeça e a cauda, os opostos, encontram-se, nasce uma
corrente, que é ao que os alquimistas se referem [...] como uma
manifestação do Si mesmo. Tal é o resultado da coniunctio neste caso. Em muitos outros o descreve como a pedra
filosofal, mas, como dizem também muitos textos, a água da vida e a pedra são
uma mesma coisa” (VON FRANZ, 1985, 134).
A partir deste levantamento bibliográfico
e imagético da simbologia do Ourobóros, é possível perceber correspondências encontradas entre a imagem e o processo de individuação, porém,
tais associações serão melhor elaboradas no capítulo seguinte, assim como os paralelos dos temas
individuação e Ourobóros com os processos alquímicos.
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