• Psicologia

    "Senta-te ao sol. Abdica E sê rei de ti próprio."
  • Alquimia

    Calcinação, sublimação, separação, conjunção, fermentação, destilação e coagulação
  • Ouroboros

    Mordendo a própria cauda?

[#7] Alquimia, Individuação e Ourobóros: Conclusão

   “Nosce te ipsum”   
- Oráculo de Delfos



Conclusão

O presente trabalho teve como objetivo traçar os paralelos entre a opus alquímica e o processo de individuação, investigando o significado da imagem alquímica e arquetípica, suma do processo de individuação, o Ourobóros. Através do método de amplificação e de levantamentos bibliográficos, foram analisadas obras filosóficas e/ou acadêmicas que explicitavam a simbologia desta imagem arquetípica, suas correspondências dentro da simbologia alquímica e as respectivas analogias com o processo de individuação descrito por C. G. Jung.

'Édipo e a Esfinge' obra de Gustave Moreau (1964)

A amplificação promove associações diretas da consciência frente a uma imagem, conteúdo ou símbolo explorado, cujo nome é circumbulação, ou seja, um movimento circular em torno de um ponto - o próprio método é o uma manifestação ourobórica - “a amplificação consiste simplesmente em estabelecer paralelos” (JUNG, 1935, 172).
Estende-se ao ponto de considerar aspectos coletivos através de experiências individuais, recorrendo a fontes de cunho cultural, histórico, mitos e filosóficos, afim de “ampliar o conteúdo metafórico do simbolismo” (JUNG, 1935, 173).
O símbolo estaria carregado com os significados arquetípicos de uma forma apresentável para o ego, e seria então o terceiro fator da relação psique-corpo, um intermediador que facilitaria o equilíbrio e manifestação da individualidade, possibilitando uma vida menos sintomática. Uma vez que a psique tem dificuldade de perceber e atuar com diferentes polaridades, a doença de manifesta como uma forma de chamar a atenção para a unilateralidade da psique, e convidá-la a integrar outros aspectos.

Hieroglifo egípcio 'Ankh', que representa a chave para a vida eterna

Seria o símbolo então a ferramenta principal da psique para se manifestar e se transformar, e que, as religiões, são carregadas destes símbolos que ajudam o homem a se religar com o divino, ou com seu próprio self, numa forma de vir-a-ser mais natural e fluída. Toda manifestação de doenças exigiria uma compreensão e investigação simbólica, que facilitaria a dissolução da mesma.
Em síntese, considerando o paradigma social de unilateralidade, manifestado entre outras esferas, na psique, produz adoecimentos nos indivíduos, em níveis mentais e físicos.
A integração desses aspectos psicológicos inicialmente opostos seria, portanto, a chave da chamada individuação. Através destes, seria possível atingir um estado psicológico centrado, no qual o maniqueísmo neurótico não mais afetaria negativamente.

Mandala Tibetana

A individuação, portanto, diz respeito ao processo cíclico de integração dos opostos psíquicos para transcender e atingir um contato mais significativo com suas essências e se aproximar do arquétipo divino, o Si-mesmo (Self), e está intimamente ligada com os processos e etapas alquímicas.
Realizar a síntese destes opostos no Si-mesmo é a meta do processo de individuação. Isso ocorre com a discriminação e a consequente integração de conteúdos inicialmente inconscientes e que fazem parte de um processo de transição da consciência comum (vigília) para um estado psíquico mais amplo, na busca do homem consciente, o homem total.

“De acordo com Jung, o ser humano possuí uma forte necessidade de auto conhecimento e de obtenção de um equilíbrio psicológico e pessoal, e este propósito universal reflete-se nos arquétipos e pode ser identificado ao longo da história, em todas as religiões e orientações religiosas.” (CHEVALIER, 1998, 11)

Evidentemente, esta é uma experiência incomum e vivida por poucas pessoas geralmente não antes da segunda metade da vida. A Individuação é um processo que ocorre durante toda a vida, mas, às vezes, há uma intensificação antes da maturidade da idade adulta e, quando isso acontece, há uma mudança na forma da pessoa encarar sua vida, fazendo-a manifestar, às vezes, alguns “comportamentos místicos”, num sentimento de comunhão e harmonia com a vida.

'Sadhu' pintando o rosto com a marca do deus Shiva

É de suma importância que as pessoas consigam refletir e entrar em contato com tais aspectos de suas personalidades, uma vez que, compreendendo-as, é possível integrá-las, tendo como consequência uma existência mais saudável e prazerosa, transcendendo a patologia e permitindo que suas verdadeiras essências venham à tona e se transformem. 
A alquimia, como um antigo método para a obtenção desse re-ligare com o Self, permite o amadurecimento da psique através de metáforas, possibilitando a integração de opostos psíquicos complementares. Percebemos que o processo alquímico é cíclico, e, assim como o processo de individuação, exige um constante processo de atuação do indivíduo para com seus conteúdos, processo este que Jung define acontecer por toda a vida. A mesma metáfora pode ser utilizada para definir o Ourobóros, um processo cíclico e constante, que representa a integração de opostos e a volta para a unidade.
O Ourobóros é a resolução do conflito dialético atingido na busca da Individuação a unidade da separação, ou solve et coagula (dissolve e solidifica), representando metaforicamente todo o processo da opus alquímica. É uma símbolo presente em diversas esferas sociais e religiosas. A imagem revela o paradoxo do infinito, onde tudo se inicia em seu próprio fim, e acaba em seu próprio começo.

"A Short Tour and Farewell" de Raymond Douillet

A partir deste levantamento bibliográfico e imagético da simbologia mandálica e da serpente, fica claro as correspondências arquetípicas encontradas entre o processo de individuação, a figura do Ourobóros e os processos alquímicos.
Sendo assim, o principal resultado deste trabalho aponta que a figura do Ourobóros é uma ideia arquetípica que se refere à capacidade humana de se renovar e se superar, solucionando os conflitos egóicos, e ampliando a consciência humana no sentido da individuação, promovendo saúde mental.

Garoto segurando uma flor, imagem da internet sem referência

Mas e aí, entendi o círculo, e como posso transcender esse aspecto circular e me aproximar mais do meu próprio Self? O caminho é longo e, como vimos, não tem fim, mas formas geométricas e símbolos podem nos ajudar, como uma chave, a abrir as portas para o desconhecido, o inconsciente. Devemos ficar atentos ao que nossa intuição nos mostra, aos caminhos que nosso coração aponta. Tudo está interligado e o círculo, é só o começo.

Demonstração do princípio hermético da correspondência: símbolos, macro e microcosmo

 Como vimos, Masan (2009) apresenta o Amor como uma das chaves para a integração psicológica dos opostos e eu particularmente sou adepto desta filosofia: através da compreensão, empatia e alteridade podemos nos permitir uma real abertura para tudo aquilo diferente de nós e dos nossos valores, e com afeto, perceber o Outro como um reflexo de nós mesmo, um universo complementar que permite integração psíquica e saúde mental. Talvez, como diria Sartre, o inferno realmente são os outros. Mas é também no outro que vive a semente do Paraíso, pois só se pode provar a doce ascensão, aquele que já viveu a amargura da queda.






[#6] Alquimia, Individuação e Ourobóros: Amplificação Simbólica

“Running forward/ Falling back/ Spinning round and round/ Looking outward/ Reaching in/ Scream without a sound/ Leaning over/ Crawling up/ Stumbling all around/ Losing my place/ Only to find I've come full circle”
-          Dream Theater

Análise

Como descrito anteriormente, o método de amplificação consiste em três etapas principais: contato com o símbolo, associação com outras imagens arquetípicas, e o retorno do símbolo e seu valor individual associado com o valor coletivo e arquetípico.

Ouroboros num manuscrito judaico do Séc 18

“Portanto, a amplificação é executada em três fases distintas: a primeira seria o contato com o símbolo e as observações experienciais do analisado; a segunda é a etapa de amplificação coletiva, onde se pega um símbolo específico e o associa com outras imagens arquetípicas, e por isso pode ser denominada de objetividade da imagem; a terceira e última é o retorno ao subjetivo com o auxilio das analogias universais, em outras palavras, o símbolo – primordialmente individual – manifestado passa por uma variedade de possibilidades significativas através da associação com a coletividade, após essa etapa, ele necessita do indivíduo – que utiliza como parâmetro o reconhecimento afetivo dentro dos aspectos coletivos – para dar sentido ao símbolo” (CHAISE E VIANA apud JUNG, 2011, 12).


Contato com o Símbolo

É de valor significativo então explicitar que individualmente, passei a me interessar pela imagem arquetípica do Ourobóros quando situações da minha vida exigiam mudanças de atitude e paradigma. Eu simplesmente enxergava a imagem em tudo que via formas circulares, letras de músicas, poemas, poesias, ou seja, realizei espontaneamente associações que fizeram com que a imagem simplesmente conversasse comigo, chamando minha atenção para algo que, a priori, era nebuloso para o meu eu consciente.
 Comecei a procurar em todos os lugares literaturas que pudessem me ajudar a entender o significado desta imagem, e como ela aparecera para mim. Ao meditar sobre a mesma, fui tomado por sentimentos de mudanças e transformações, que eu, intuitivamente, sabia que precisava reavaliar a forma que manifestava minha existência para atingir um crescimento que defino como espiritual, ou seja, me alinhar com a manifestação real que emanava animicamente do meu ser.

"Fred", Anão de Jardim da 'Compania Internacional'

Sentia que me encontrava vazio, desorientado e sem forças para tomar qualquer atitude de mudança quanto a minha própria situação. Com o passar do tempo, e incorporando literaturas que variavam de esferas como psicologia, filosofia, mitologia e outras de cunho espiritual, percebi uma pequena faísca de transformação começar a se manifestar em meu âmago. Consegui com o tempo elaborar uma série de questões e embarcar numa aventura mitológica e pessoal que me permitiu acessar aspectos, não só desconhecidos de minha pessoa, como também fantásticos, que me deram forças necessárias para realizar transformações pessoais, que acabaram por afetar toda minha dinâmica social e individual.
No entanto, não é a primeira vez que alguma figura brota do inconsciente, muito menos essa figura da serpente circular. O elemento químico Benzeno que apresenta uma forma cíclica foi descoberto pelo químico August Kekulé. No ano de 1890, numa convenção em Berlim realizada para comemorar os 25 anos da publicação de Kekulé sobre a estrutura do Benzeno, o mesmo relatou um suposto sonho que serviu de ‘insigh’ para sua descoberta:

“Estava sentado escrevendo meu manual, mas o trabalho não progredia; meus pensamentos estavam dispersos. Virei minha cadeira para a lareira e adormeci. Novamente os átomos saltavam à minha frente. Desta vez os grupos menores permaneciam modestamente no fundo. Meu olho mental, aguçado pelas repetidas visões do gênero, discernia estruturas mais amplas de conformação múltipla; longas fileiras às vezes mais estreitamente encaixadas, todas rodando e torcendo-se em movimentos de cobra. Mas veja só! O que é aquilo? Uma das cobras havia agarrado a própria cauda e a forma rodopiava de modo a debochar ante meus olhos. Como se à luz de um relâmpago, despertei; e desta vez, também passei o resto da noite tentando estender as consequências da hipótese. Senhores, aprendamos a sonhar, e talvez então  encontraremos a verdade [...] mas também vamos ter cuidado para não publicar nossos sonhos até que eles tenham sido examinados pela mente desperta.”

Estrutura de Benzeno envolta por Ourobóros


Amplificação Coletiva e Analogias Universais

Cirlot (1974) consegue em seu Diccionario de los símbolos sintetizar a maioria das analogias levantadas no trabalho:

“Este símbolo, que aparece principalmente entre os gnósticos, é um dragão ou serpente que morde a própria cauda. Em sentido mais geral, simboliza o tempo e a continuidade da vida. Em suas representação tem por complemento que diz: Hen to pan (o Um, o Todo. Assim aparece no Codex Marcianus do século II d.C. Foi interpretado como a união do princípio ctônico da serpente e o princípio celeste do pássaro (síntese que se pode aplicar ao dragão).

"The Bitter End" arte digital de Bluefooted (Deviant Art)
Segundo Ruland, isto o define como variante simbólica de Mercúrio, o deus duplex. Em algumas representação a metade do corpo do animal é clara e a outra escura, aludindo à contraposição sucessiva de princípios, como o símbolo chinês Yang-Yin. Segundo Evola, é a dissolução dos corpos: a serpente universal que, segundo os gnósticos “caminha através de todas as coisas”. O veneno, víbora, dissolvente universal, são símbolos do indiferenciado, do “princípio invariável” ou comum, que passa entre as coisas e as liga. O dragão, como o touro, luta contra o herói solar.

'Ouroboros', arte plástica de 
Segundo E. Neuman, em seus estudos sobre o simbolismo matriarcal, o símbolo primordial da criação do mundo é a serpente que morde a sua própria cauda, ato que significa autofecundação. No manuscrito veneziano de alquimia vemos a serpente do Ourobóros com uma metade negra (símbolo da terra) e a outra metade branca e salpicada de pontos que representam estrelas (céu) o que ratifica esse caráter de coniunctio e hierogamia. Assinala o doutor Sarró, em seu artigo “El mito de la serpiente Ouroboros y el simbolismo letamendiano del organismo”, que este mito se refere a ideia de uma natureza capaz de renovar-se a sí mesma, cíclica e constantemente, de acordo com Nietzsche em O Eterno Retorno” (CIRLOT, 1974).

Outras analogias possíveis à imagem arquetípica do Ourobóros é sua semelhança com a simbologia e cultura Hindu, que fora melhor explorada no capítulo anterior através do conceitos de “Kundalini”, que significa ‘enrolada’. Metaforicamente uma serpente enrolada na altura do cóccix esperando para ser despertada (em nível de consciência).

Representação da subida de 'Kundalini'

E como já vimos anteriormente, a simbologia egípcia é rica e pertinente no que diz respeito a análise de imagens primordialmente arquetípicas. O ‘Uraeus’ é um adorno de serpente que era utilizado na cabeça dos faraós ou para adornar templos, que representa as características divinas e soberanas do governante, mas principalmente sua imortalidade.

'Uraeus' adornando a cabeça do deus Hórus em gravura egípcia 

Pode ser associado também ao Arcano 10 do tarô, correspondente à Roda da Fortuna, carta definida pelo tarólogo Constantino Riemma como “os ciclos sucessivos na natureza e na vida humana. As fases da manifestação, o movimento de ascensão e de declínio. A mobilidade das coisas”. O símbolo do Ourobóros aparece também em algumas cartas do Arcano 21: O Mundo. Constantino afirma que esta carta representa “Finalização, realização, recompensa, apoteose.  Encontrar o próprio lugar no mundo. Centralizar-se. O equilíbrio inspirado”.

Cartas "A Roda da Fortuna" e "O Mundo", retiradas do tarô alquímico de Robert Place

Segundo o psiquiatra Paulo Urban, entre os astecas e outras cultural da América Central e andina, Quetzalcoatl, a serpente emplumada (uma combinação de Quetzal, pássaro e serpente), é uma divindade solar e surge como elo entre os deuses e os homens, podendo ainda estar associada à chuva, ao vento, aos raios e trovões, bem como ao sopro da vida, ou ainda ao tempo incriado.

'Quetzalcoalt' de SanMonet

Na mitologia africana, o Orixá (divindade) Oxumaré é caracterizado segundo Reginaldo Prandi em “Mitologia dos Orixás” como “símbolo da continuidade e da permanência, algumas vezes, é representado por uma serpente que morde a própria cauda”, podendo representar aspectos tanto masculino quanto femininos, além de representar “a mobilidade, a atividade, uma de suas funções é a de dirigir as forças que dirigem o movimento”.
           
Gravura do Orixá 'Oxumaré'

Encontramos outra referência ao ofídio circular se analisarmos a cultura nórdica, na mesma existe uma serpente chamada Jörmundgander. Segue o relato da lenda tirado de um diálogo série do History Channel “Vikings”:

“O grande mar é mantido no lugar por Jörmundgander a Serpente, que com seu corpo gigante o circunda e mantém seu rabo em sua boca para completar o círculo e impedir as ondas de se libertarem. Mas um dia, o Deus Thor, filho da Terra, pescava no mar pela Serpente, usando a cabeça de um touro como isca. Jörmundgander levantou e as ondas bateram na praia, enquanto ele se torcia e se retorcia em fúria. Eles combinavam bem, Serpente e Deus, naquela briga furiosa. O mar ferveu ao redor deles, mas, então, o gancho ficou desalojado, a Serpente rastejou livre, e afundou novamente, muito rápida, sob as ondas. E logo, o mar ficou calmo de novo, como se nada tivesse acontecido.”

Jörmundgander em volta do símbolo de proteção Aegishjálmur e gravura dessa serpente marinha enfrentando o deus Thor

Na cultura oriental, especificamente no Zen Budismo, existe um conceito chamado “Ensō”, cujo o significado em japonês é ‘círculo’:

“Simboliza iluminação, força, elegância, o universo e o vazio; também pode simbolizar a própria estética japonesa. Como uma "expressão do momento" é frequentemente considerado uma forma de arte expressionista. [...] Na pintura zen budista, o ensō simboliza um momento quando a mente está livre para simplesmente deixar os sentidos criarem. Os zen budistas acreditam que o caráter do artista está completamente exposto na forma com a qual desenha um ensō. Apenas uma pessoa mentalmente completa, que tenha percebido sua natureza búdica, consegue desenhar um ensō verdadeiro. Alguns artistas praticam o desenho do ensō diariamente, como uma espécie de exercício espiritual."
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ens%C5%8D

Caligrafia de Kanjuro Shibata (2000)

            Além disso o símbolo do Ourobóros é encontrado em diversos materiais ocultistas, gnósticos, esotéricos e alquímicos,  sendo representado em gravuras, selos e inclusive como emblemas de algumas sociedades esotéricas, como por exemplo a Sociedade Teosófica, que tem como base os ensinamentos de Helena Pretovna Blavatsky. A teosofia é incrível e não cabe agora comentar sobre a mesma, mas quem tiver interesse: http://pt.wikipedia.org/wiki/Teosofia

Emblema da Sociedade Teosófica com os dizeres "Não há Religião maior  que a Verdade"

Estas foram alguma das analogias universais levantadas ao longo deste trabalho. É possível concluir que a imagem do Ourobóros é extremamente rica e presente em diversas culturas e momentos históricos, podendo ser caracterizada como arquetípica, portanto, universal. Ela representa os ciclos, o eterno, a integração, a completude, a transformação, o desenvolvimento de si-mesmo, a harmonia, o infindável movimento do flerte constante das polaridades que impulsiona a criação e expansão da vida à partir da sua essência.

[#5] Alquimia, Individuação e Ourobóros: Símbolos e Imagens Arquetípicas

“Vivo minha vida em círculos cada vez maiores que se estendem sobre as coisas. Talvez não possa acabar o último, mas quero tentar.”
- Reiner Rilke

Símbolos e Imagens Arquetípicas

Símbolo

A palavra símbolo remete ao do grego symbolon, derivado do verbo sym-ballein, que significa “lançar com, pôr junto com juntar”. A etimologia da palavra remete que símbolo é, a priori, uma dualidade, que se forma uma. A própria definição da palavra já remete a integração dos opostos e pode ser associada com a imagem do Ourobóros.


Primeira gravura do "Uraltes chymisches Werck" de Abraham Eleazar

Os conceitos simbólicos foram desenvolvidos em diversas religiões como reflexo de diferentes concepções do mundo e de novas linguagens.

“No seio da multiplicidade de crenças desenvolvidas pelo ser humano, a primeira distinção efetuada pelo homem foi entre o Bem e o Mal. Nas culturas pagãs, este conceito de dualidade moral poderia ser identificado nos símbolos positivos com o lado masculino, o Sol ou o céu, e nos símbolos negativos como o preto, o lado feminino, a Lua, a água ou o inferno. Da mesma forma, nas religiões, como por exemplo o cristianismo, o poder do Bem encontra-se simbolizado em Deus e em Cristo, e a força do Mal em Satanás. No que respeita a mitologia, tal como acontece no hinduísmo, a luta travada entre as forças superiores e as força inferiores é representada através do conflito entre a  ave solar Garuda e as serpentes Nagas, hindus e, na tradição ocidental, entre a águia e o dragão. Na maioria das culturas a verdadeira perfeição apenas poderá ser alcançada através da conciliação e da união das forças opostas do universo. Nesta sequência, o símbolo taoista de Yin-Yang e, na alquimia, a figura do Andrógino representam ambos estes ideais, à semelhança do que acontece na psicologia.” (CHEVALIER, 2008, 10)

Jung (1964) introduz a noção de símbolo como um conjunto de significados que transcendem sua própria imagem concreta. Um símbolo remete a algo maior que o próprio símbolo; um conjunto de ideias orientadas através de um sutil emaranhado de padrões.
Como possível gênesis de símbolos, Jung compreende que os sonhos revelam através de suas férteis imagens arquetípicas, grande parte do mistério do símbolo, e que, ao sonhar, o homem bebe da fonte do desconhecido e inicia sua jornada pelo conhecimento. Compreendendo os sonhos como manifestados também por conteúdos inconscientes, logo se percebe que a busca de conhecimento através dos sonhos, nada mais é do que buscar conhecer a si mesmo. Através de sua consciência, o homem aprendeu a viver através da parcial previsibilidade das coisas, mas seu inconsciente demonstra ao menos metade de um grande escopo de possibilidades antes fora do seu campo de compreensão.


Cosmic, arte de Geometria Sagrada de Daniel Martin Diaz
            Jung rompe com a escola psicanalítica quando define que o valor do conceito de “libido não está em sua definição sexual, mas no seu ponto de vista energético” (JUNG, 1989,  p. 127-8), ou seja, define como energia psíquica todas as pulsões provenientes da psique e do inconsciente, estabelecendo que a libido freudiana é só mais um dos canais de expressão desta energia. O que difere empiricamente na interpretação do fenômeno é que na teoria freudiana parte-se da causa para o efeito, engessando a percepção interpretativa num molde teórico, a teoria da sexualidade. Ao partir dos efeitos para depois compreender as causas, Jung consegue analisar a psique de forma dinâmica, e superar a teoria sexual. A energia psíquica é a fonte de toda a movimentação humana em busca de crescimento.

Ourobóros

Mas o que é um Ourobóros? Quem nunca ouviu a expressão ‘morder a própria cauda’? É normalmente utilizada para descrever o momento em que alguém, inconsciente de si, repete ações sem atingir os objetivos estabelecidos, e por isso, exige um olhar para si, reavaliando seus métodos de ação.
O Ourobóros é a resolução do conflito dialético atingido na busca da individuação à unidade da separação, ou solve et coagula (dissolve e solidifica), representando metaforicamente todo o processo alquímico descrito no capítulo anterior. É uma imagem alquímica presente em diversas esferas sociais e religiosas, na qual uma cobra, ou dragão, morde a sua própria cauda num movimento circular. A imagem revela o paradoxo do infinito, onde tudo se inicia em seu próprio fim, e acaba em seu próprio começo.

Exemplo de um Dragão Ourobóros

Se reduzirmos o símbolo em imagens ainda mais primordiais, como círculo, o dragão e a sepente começamos a desvelar o significado deste símbolo. Seguem transcrições do “Dicionário de Símbolos”, de Nadia Julien:

Círculo

- Representa “o desenvolvimento contínuo da criação”. E mais, ele representa o ciclo do tempo, o movimento perpétuo de tudo que se move, os planetas em torno do sol (círculo do zodíaco) que se projeta nos tempos circulares, a arena, o circo, a dança circular.
- Símbolo da perfeição para o Islamismo, da divindade (disco solar) e da luz no Egito, expressão do que não tem começo nem fim, simbolizando a eternidade representada pela serpente que morde a cauda, cuja divisa é um, o todo, a substância universal rarefeita até a imperceptibilidade para constituir a essência íntima das coisas, o fundamento imaterial de toda a materialidade, ou a prima matéria dos alquimistas.
- O círculo é também o zero de nossa numeração e representa as potencialidades, o embrião. Comportando um ponto central, o círculo é a representação do ser manifestado, evocando o conceito de ordem, de cosmo e de harmonia. Nos sonhos o círculo é um símbolo do Eu, e indica o fim do processo de individuação, da evolução da personalidade para a sua unidade.

Diagrama em círculos dos planetas alquímicos

Dragão

- Para os alquimistas, as atitudes do dragão simbolizam as etapas da grande obra.
- Imagem arcaica das energias mais primitivas, o dragão representa o inconsciente durante tanto tempo enquanto não possuirmos acesso a ele, onde as paixões os complexos inconscientes, os desejos ocultos conduzem a uma vida arcaica. Isto que se explica a fundo com os poderes do psiquismo, que luta com o dragão, pode recuperar uma parte das energias inconscientes que pode utilizar para dominar sua vida.
- A luta com o dragão é um símbolo do amadurecimento... então, ele terá ganho o tesouro que os dragões guardam em quase todas as mitologias. Libertará sua alma, esta virgem que o dragão mantinha prisioneira.

O Dragão Smaug protegendo seu tesouro na gravura "There He Lay" de Justin Gerard

Serpente

- A serpente representa o conjunto dos ciclos da manifestação universal. No processo de criação, rodeando o ovo cósmico (o caos), simboliza a fecundação pela incubação do espírito vital divino, semente de todas as coisas, assim liberadas dos elos da matéria inerte pelo poder divino.
- Símbolo da imortalidade, enrolada em torno da árvore de maçãs de ouro do jardim das Hespérides; rodeia o Ônfalo, ou a montanha cósmica (eixos do mundo), simbolizando o conjunto de ciclos da manifestação universal, o Samsara, a cadeia do ser no ciclo indefinido de renascimentos, o percurso indefinido e renovado das existências.
- A serpente do paraíso é o símbolo do conhecimento perigoso (descoberta da sexualidade). Daí transformar-se num símbolo fálico e sexual (a serpente tentadora, portadora de forças perigosas e maléficas cuja a arma é a sedução empregada por Eva, a Anima).
- Em suas relações com o inconsciente coletivo, o ofídio representa num nível inferior a agressividade, e num nível superior o poder e a sabedoria. É a representação do inconsciente, onde se acumulam todos os fatores rejeitados, recalcados, desconhecidos ou ignorados e as possibilidades desmedidas em nós.
- São estas forças muito primitivas, aglomeradas em constelação, que colocam em jogo a serpente no sonho. É a manifestação de uma energia psíquica dormente pronta a se tornar concreta, em positivo ou negativo, em razão da ambivalência do simbolismo deste animal de sangue frio (pavor, angústia), como do melhor (propriedades curativas e salvadoras).

"De Zondeval" de Cornelis van Harleen

Segundo Erik Hournung (1999), a primeira aparição conhecida do símbolo Ourobóros está no Netherworld, um texto funerário egípcio encontrado na tumba de Tutancâmon, no século 14 AC. Referindo-se a união do deus Ra e Osíris no submundo. Em uma ilustração deste texto, duas serpentes, mordendo as caudas. Ambas as serpentes são manifestações da divindade integrada que representa o início e o fim do tempo.
O texto alquímico “Chrysopoeia de Cleópatra”, datado do século está grafado com o os dizeres ‘hen to pan’, em tradução livre: “o um é o todo” além de uma imagem de uma cobra, metade branca, metade preta, mordendo a própria cauda. Novamente a figura circular ofídia como uma dinâmica polarizada, cíclica que se integra tornando-se Um.  O Ourobóros de Chrysopoeia poderia ser interpretado como o equivalente ocidental do símbolo taoista Yin-Yang.

 “El signo del Yin-Yang, según la filosofía oriental, simboliza un concepto fundamentado en la dualidad de todo lo existente en el universo. Describe las dos fuerzas fundamentales, aparentemente opuestas y complementarias que se encuentran en todas las cosas” (BADANO, 2010).


Ourobóros de Chrysopoeia comparado ao símbolo oriental do Yin e Yang

Outra alegoria religiosa que podemos associar com a simbologia da serpente e seus movimentos circulares estão na cultura Hindu, através da serpente Kundalini, que em sânscrito significa “serpente enrolada”. Nesta cultura yogue, o corpo humano é divido em sete centros básicos de manifestação de energia, ou Chakras, e Kundalini, a origem desta manifestação energética, estaria ‘adormecida’ no primeiro centro, abaixo da coluna vertebral.
Conforme o indivíduo se purifica e pratica as técnicas que envolvem controle da respiração, postura e meditação, ele ‘desperta’ a ‘serpente’ que sobe pelos centros de energia, fazendo com que o praticante atinja a iluminação, ou individuação. A figura da esquerda representa este processo enquanto a figura da direita ilustra os centros de energia:

Ilustração da subida de Kundalini e a referência do trajeto pelo "Chakras"

Esse mesmo simbolismo pode ser encontrado no Caduceu de Hermes, símbolo da medicina, visto no capítulo anterior. Curioso a correspondência entre as cores dos sete centros de energia com as sete etapas alquímicas que vimos aqui.
Limitemos nossa análise a simbologia religiosa Alquímica, apesar de todos os sincretismo encontrados em diversas culturas religiosas acerca da imagem do Ourobóros. Quem sabe os posts futuros não possam tratar desses assuntos.

“O Ourobóros é um símbolo dinâmico para a integração e assimilação de opostos, i.e., da sombra... Simboliza o Um, que resulta no conflito do opostos, e portanto constitui o segredo da prima matéria...” (JUNG, 1976, 365)

Esta é uma imagem arquetípica bastante rica, contextualizado sob o paradigma de integração, ou conjunção, de aspectos opostos. Fica evidente que a figura representa não só a união dos opostos complementares da psique como todo o potencial do processo alquímico.

“Os alquimistas, de sua própria maneira sabiam mais sobre a natureza do processo de individuação que nós modernos, expressavam este paradoxo através do símbolo do Ourobóros, a cobra que morde a própria cauda. Do Ourobóros é dito ter o significado do infinito ou completude. Na antiga imagem do Ourobóros está o pensamento de se devorar e se transformar em um processo cíclico, pois era claro para os alquimistas mais astutos que a arte da matéria prima era o próprio homem. O Ourobóros é um símbolo dramático para a integração e assimilação dos opostos, ou seja, da sombra. Este processo de "feed-back" é ao mesmo tempo um símbolo da imortalidade, uma vez que é dito dos Ourobóros que ele mata a si mesmo e se traz à vida, fertiliza a si mesmo e dá a luz a si mesmo. Ele simboliza o Um, que procede do choque de opostos, e, portanto, constitui o segredo da prima matéria que [...] decorre, sem dúvida, do inconsciente do homem." (JUNG, 1976, 513)

Gravura de "Uma Coleção de Emblemas Antigos e Modernos" de George Whiters (1635) 

No livro “A tábua de esmeralda: Alquimia para transformação pessoal”, Dennis Hauck explícita sobre o símbolo ourobórico e o associa com etapas alquímicas:

"Descrições mais alegóricas abundam na literatura medieval e representações, entre as quais estão aqueles que compreendem tanto aspectos "esotéricos", quanto "exotéricos" da Alquimia. Tal símbolo, cujas origens podem ser traçadas de volta para o Egito Antigo é a dos Ourobóros, a serpente mordendo a cauda, simbolizando a imortalidade, e os ciclos eternos de mudança do mundo. Isso também pode ter significado para refletir a integração e reversibilidade de certas transformações alquímicas como a "destilação" e "condensação". (HAUCK, 1999, 156)

Gravura encontrada no Castelo de Ptuj, Slovênia (Séc XII)

Ou ainda nas palavras de Von Franz, no livro Introdução a Alquimia:


“O que tem luz se cria na escuridão da luz. Mas quando alcança sua perfeição, recupera-se de suas enfermidades e debilidades e então aparecerá esta grande corrente da cabeça e da cauda. [...] É uma luz nova que nasce na escuridão, e então se vão todos os sintomas neuróticos e a enfermidade e a debilidade [...]. Aqui é mister recordar ao Ouroboros, que come a cauda, onde os opostos são um: a cabeça está em um extremo e a cauda no outro. São um, mas têm um aspecto oposto e quando a cabeça e a cauda, os opostos, encontram-se, nasce uma corrente, que é ao que os alquimistas se referem [...] como uma manifestação do Si mesmo. Tal é o resultado da coniunctio neste caso. Em muitos outros o descreve como a pedra filosofal, mas, como dizem também muitos textos, a água da vida e a pedra são uma mesma coisa” (VON FRANZ, 1985, 134).

A partir deste levantamento bibliográfico e imagético da simbologia do Ourobóros, é possível perceber correspondências encontradas entre  a imagem e o processo de individuação, porém, tais associações serão melhor elaboradas no capítulo seguinte, assim como os paralelos dos temas individuação e Ourobóros com os processos alquímicos.